“ … Havia muitas sensações boas. Subir o monte, parar no cimo e, sem olhar, sentir atrás a extensão conquistada, lá longe a fazenda. O vento fazendo esvoaçar as roupas, os cabelos. Os braços livres, o coração fechando e abrindo selvagemente, mas o rosto claro e sereno sob o sol. E sabendo principalmente que a terra embaixo dos pés era tão profunda e tão secreta que não havia a temer a invasão do entendimento dissolvendo seu mistério. Tinha uma qualidade de glória esta sensação.”
…
“… Oh, havia muitos motivos de alegria, alegria sem riso, séria, profunda, fresca. Quando descobria coisas a respeito de si mesma exatamente no momento em que falava o pensamento correndo paralelo à palavra. Um dia cantara a Otávio histórias de Joana-menina do tempo da criada que sabia brincar como ninguém. Brincava de sonhar.
— Está dormindo?
— Muito.
— Então acorde, é de madrugada. . . Sonhou? A princípio sonhava com carneiros, com ir à escola, com gatos tomando leite. Aos poucos sonhava com carneiros azuis, com ir a uma escola no meio do mato, com gatos bebendo leite em pires de ouro. E cada vez mais se adensavam os sonhos e adquiriam cores difíceis de se diluir em palavras.
— Sonhei que as bolas brancas vinham subindo de dentro…
— Que bolas? De dentro de onde?
— Não sei, só que elas vinham…
Depois de ouvi-la, Otávio lhe dissera:
— Agora penso que talvez tivessem abandonado você muito cedo… a casa da tia… os estranhos … depois o internato…
Joana pensara: mas havia o professor. Respondera:
— Não… O que mais poderiam fazer comigo? Ter tido uma infância não é o máximo? Ninguém conseguiria tirá-la de mim… — e nesse instante já começara a ouvir-se, curiosa.
— Eu não voltaria um momento à minha meninice, continuara Otávio absorto, certamente pensando no tempo de sua prima Isabel e da doce Lídia. Nem um instante sequer.
— Mas eu também, apressara-se Joana em responder, nem um segundo. Não tenho saudade, compreende? — E nesse momento declarou alto, devagar, deslumbrada. — Não é saudade, porque eu tenho agora a minha infância mais do que enquanto ela decorria…
Sim, havia muitas coisas alegres misturadas ao sangue.”
(Clarice Lispector – trecho de Perto de um Coração Selvagem)
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